terça-feira, 9 de novembro de 2010

I Ato - Gabriella Monteiro

A Biblioteca Central da cidade é o local que mais me atrai quando encontro buracos nos meus horários. Perco horas e horas com a variedade de livros que ficam expostos nas estantes.
Sempre acompanhada de um bom cappuccino da Cafeteria da biblioteca, e acomodada na minha poltrona preferida da área de leitura, me desligo do que acontece a minha volta.
A fumaça que sobe da minha grande xícara traz um cheiro embriagante de cappuccino as minhas narinas, mas deixa minha visão embaçada, impedindo assim a continuação da minha leitura de Hamlet – William Shakespeare.
Em meio as minhas tentativas frustradas de continuar a leitura, ouço aqueles passos longos e rápidos pelos corredores de livros. O cheiro do cappuccino não é mais o único a embriagar-me, mas um aroma amadeirado inconfundível domina o ambiente a minha volta. A escuridão predomina nas janelas. O sol perde o seu brilho no céu, embora não seja preciso que ele esteja ostentado do lado de fora para que aqueles cachos dourados brilhem aqui dentro.
“Incrível! O que são borboletas na barriga comparadas ao que eu estou sentindo nesse exato momento?” Pensei. “Talvez sejam várias delas. Malditas borboletas! Voando e voando pela minha barriga, me fazendo sentir o inexplicável.”
Listei algumas vantagens e desvantagens em minha mente.
“Uma vantagem de chegar cedo na biblioteca: Pegar um lugar bom, afastado de todos. Dele.
Uma desvantagem de chegar cedo: Ele sentar na minha frente, do meu lado, próximo a mim...”
Bom, lá estava ele. Com aquela camisa verde musgo que eu adoro, vários livros a sua volta, e a caneta na boca. Sempre com a caneta na boca. “Há quanto tempo te observo? O quanto sei sobre você?” Perguntei-me.
Já havia lido a mesma linha umas cinco vezes e nada do que estava escrito ali eu pude assimilar. Tomei um pouco do café. “Qual café?”. Olhei a xícara vazia e não havia nada ali, a não ser o fundo vazio com pequenas gotas do último gole. Levantei-me e fui em direção a Cafeteria encher pela terceira vez a mesma xícara desde que cheguei.
Com a xícara cheia, e a cafeína começando a fazer efeito sobre mim, me sentei na minha poltrona grande e confortável. Voltei a mesma linha do ato III, cena II

“Pois vê só quão pouca consideração tens por mim: estás querendo tocar-me, como instrumento, conhecer os meus registros, do mais alto ao mais baixo. Há muita música boa; aqui dentro, e mesmo assim não sabes como tirá-la deste pequeno órgão. Estás pensando, por Deus, que eu seja mais fácil de ser manuseado que um pífaro? Podes dedilhar-me á vontade, não tirarás nota alguma de mim!”

Quando as palavras de Shakespeare finalmente ganharam sentindo em minha mente, uma voz rouca, porém doce, cantou nos meus ouvidos.

“William Shakespeare sempre tentando nos dizer algo, não é mesmo?”. Ele disse com um sorriso estampado em sua face.

Decidi pôr a xícara na mesinha ao meu lado para não denunciar as minhas mãos tremulas. Sorri.
Fiquei observando-o por alguns segundos. O sorriso ainda permanecia ostentando naquele belo rosto, e seus olhos me fitando, como se estivessem à espera de uma resposta. Vi que ele lia Romeu e Julieta, também de William Shakespeare. “Que coincidência! Estranho.” Logo meus pensamentos foram interrompidos por aquela canção novamente.

“Os homens de poucas palavras são os melhores.” Ele citou, ainda sorrindo.
“Só há frases de Shakespeare no seu vocabulário meu caro?” Levantei uma das minhas sobrancelhas.
“Pensei que gostava o suficiente de Shakespeare para ouvir algumas citações minha cara. Se não me engano já é o terceiro livro dele que te observo lendo.” O sorriso ainda permanecia ali, intacto, me hipnotizando.

“Então ele andou me observando todo esse tempo? Não todo esse tempo, mas algumas vezes?” Essas perguntas vinham como loucas embaraçando meus pensamentos.
“Quinto.” O corrigi. “Na verdade Shakespeare me fascina.” Tomei um pouco do meu café.

Senti que meus olhos brilharam ao dizer essas palavras. Realmente Shakespeare me fascinava. Suas palavras se encaixam na minha vida pacata como luva, e suas histórias me proporcionam sonhos encantadores. O mais recente que teimo em sonhar, está na minha frente.

“Então ele nos fascina.” Ele se ajeitou na poltrona de uma maneira mais confortável. “Sempre que tenho um tempo livre entre as minhas leituras obrigatórias do curso de Filosofia, W.S. ocupa um pouco do meu tempo.” Ele pegou uma bala do bolso. A mesma bala de todos os dias, o mesmo sabor de todos os dias. Hortelã.
“Então você cursa Filosofia?” Perguntei descaradamente. “Como seu eu não soubesse!” Pensei.
“Sim.” Ele disse passando a página do seu livro.

Silêncio. Fez-se silêncio entre nós.
Não hesitei em pegar minha xícara de café novamente e tomar sem nem ao menos respirar ou piscar. E por mais que o café estivesse bastante quente e minha língua já estivesse dando sinais de ardência, não parei. O nervosismo tomou conta de mim de repente.
Voltei a ler Hamlet. Ato V, cena III.

“Sendo o fim doce, que importa que o começo amargo fosse? Bem está o que acaba.”

Devaneios roubaram minha atenção mais uma vez. Entretanto, a voz dele preencheu o silêncio que nos afastou.

“O louco, o amoroso e o poeta estão recheados de imaginação.” Citou. “Qual deles prefere ser?”
“O amoroso.” Lhe respondi.
“Quando fala o Amor, a voz de todos os deuses deixa o céu embriagado de harmonia.” Citou.
“O que queres dizer com isso?”
“O queres entender com isso?” Retrucou.
“Os homens de poucas palavras são o melhores.” Citei o que ele já havia dito anteriormente.
“Então falo demais?”
“Talvez poucas palavras não signifiquem apenas quantidade, mas intenções.” Sorri.

Tentei voltar a minha leitura, mas não obtive sucesso algum. Quando levantei o meu rosto lá estava ele me observando com aqueles olhos cor de mel sem expressão alguma. “O que eu fiz?” Perguntei-me em silêncio. Comecei a guardar dentro da bolsa alguns papéis que sempre tenho ao meu lado para fazer anotações, arrependida o suficiente pelo que disse e decidida a sumir o mais rápido possível dali.
Perdida nos meus pensamentos e no grande fracasso que fui não notei a presença de alguém se sentando na poltrona vazia ao meu lado. Sem eu menos esperar uma mão quente e macia tocou uma parte nua do meu braço que a blusa não cobria. Parei imediatamente tudo que fazia e olhei na direção da poltrona. Lá estava ele, sem expressão nenhuma, me fitando.

“O amor não prospera em corações que se amedrontam com as sombras.” Citou.
“Acredita que tenho medo?” Perguntei.
“Acredito que amas.”
“Eu também.”
“As palavras estão cheias de falsidade ou de arte; o olhar é a linguagem do coração.” Citou.
“Alguns olhares enganam.”
“O meu não.”

Em meio a nós William Shakespeare se fazia presente em suas citações, aproximando dois corações pulsantes, e suplicantes por um romance.
Sua mão quente tocou as maçãs do meu rosto já corado, e seu hálito fresco de hortelã se aproximava cada vez mais dos meus lábios. Um beijo doce, carregado de delicadezas.

“Oh, paixão, que fazes com meus olhos que não enxergam o que vêem?” Pensei.

Minha visão ficou turva, e nada mais era claro como o beijo de segundos atrás. Não era mais possível sentir aquele hálito fresco perto de mim. A mão quente já não me tocava mais, e a doçura e a delicadeza se perderam em algum lugar. Nos meus sonhos.
Passei a mão nos olhos, e observei a minha volta. Meus papéis ainda se encontravam na mesinha ao meu lado. Minha xícara de café estava intacta. E a poltrona ao meu lado vazia. Na poltrona de frente a minha lá estava ele. Sentando com um livro na mão, e a caneta na boca, perdido em suas leituras.
Sorri desiludida.
Deixei o meu cappuccino de lado, e fui em busca do livro que acabei deixando cair enquanto sonhava. Achei-o do lado da mesinha, no chão.
Já se passavam das oito da noite e a Biblioteca Central começava a fechar suas portas, e restando alguns minutos resolvi aproveitá-los folheando algumas páginas para não ter em mente uma tarde inteira perdida para sonhos fantasiosos.
Entre uma página e outra, meus olhos se fixaram, e se encontraram em apenas uma frase.

“Dormir, dormir... Talvez sonhar.” William Shakespeare – Hamlet.

Desencontros na Cafeteria - Brenda Matos

A cafeteria Le Pettit Cafe tinha um quê americano. O cheiro inebriante de café pairava no ar; Nas mesas, as pessoas bebiam cappuccinos acompanhados de cupcakes de marshmallow e cookies de chocolate. Os sofás eram de cor nude e acolchoados, formando uma meia-lua em volta das mesas. No cantinho havia uma Jukebox tocando blues e jazz, estilos de música mais apreciados pelos freqüentadores do local.
Marcelo, um moço de sorriso iluminado e amante da literatura, é um desses freqüentadores. Vai à Le Pettit todos os dias, sempre no mesmo horário: 7:00hr. As idas se tornaram um ritual matutino. O pedido era sempre o mesmo: um cappuccino duplo com bastante espuma e muffins de brigadeiro. Sentava-se na mesa mais afastada, perto da imensa janela de vidro e tomava o seu café da manhã. Trinta minutos exatos. Talvez o destino cronometrasse tudo. Levantava e ia trabalhar.
No mesmo instante, às 7:30hr, chegava Fernanda. O pedido sagrado de todos os dias era um Café Mocho e Cookies, para acompanhar. Ela tinha cabelos pretos-quase-azuis pouco acima do ombro e bochechas rosadas. Sentava-se – por mera coincidência, ou não – na mesma mesa afastada e perto da janela de vidro, tomava o seu café da manhã e ia à Universidade.
Os desencontros aconteciam desde que o Café foi aberto. Estranho é o fato de aquela mesa só ser usada por eles dois. Quem sabe um deixava um pouco de si para o outro sentir na manhã seguinte, ou minutos depois. Eles já se conheciam e nem sabiam disso.
Sábado tudo mudaria. Era o dia de folga de Marcelo. Ele foi à Cafeteria, fez o mesmo pedido de sempre, sentou-se e começou a ler um livro. Poucas páginas depois e ele não se lembrava sobre o que tinha lido. A leitura teria que esperar. Fechou o livro, colocou no sofá, pegou a chave de casa na mochila e começou a rabiscar a mesa de madeira. Desenhou um homem sentado no banco do parque, segurando um copo de café e tomando banho de chuva. Escreveu uma frase de Caio Fernando Abreu que dizia “Por que estamos tão perto e tão longe?” e assinou no canto. Foi embora dali e, no momento exato em que saía, Fernanda entrava. Segurou a porta para ela, que respondeu com um tímido: “Obrigada, moço.”.
Fila. Balcão. O pedido de sempre. Ao sentar-se na mesa, viu o desenho e ficou encantada. Quem seria o tal Marcelo da assinatura? Ela estava curiosíssima, afinal ele havia citado uma frase do seu escritor favorito. Tirou o prendedor de cabelo de metal dos cabelos e completou o desenho. Fez uma mulher sentada na outra ponta do banco, com um sorriso no canto da boca e segurando um guarda-chuva na direção do moço. Citou Caio na parte de cima do desenho: "Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra." e assinou.
Quando acabou, viu o livro esquecido ao seu lado. Folheou algumas páginas e decidiu levá-lo para casa, um dia encontraria o dono – e, inconscientemente, esperava que isso acontecesse logo. Olhou para o relógio e percebeu que havia perdido a noção do tempo. Precisava chegar à Universidade em quinze minutos, tinha que se apressar. Pegou o café, colocou o livro dentro da bolsa e saiu correndo.
Incontáveis passos depois, Marcelo percebeu que havia esquecido o livro lá e retornou para buscá-lo. Eles se cruzaram no caminho, dois estranhos andando pela mesma rua, indo em direções opostas. Fernanda se esbarrou sem querer em Marcelo, deixando derramar todo o café no meio da calçada.
- Ai, que desastrada eu sou. Me desculpa, moço. Derramei em você? É que eu estou com muita pressa, preciso chegar ao ponto de ônibus... – Ela começou a tagarelar nervosa.
- Tudo bem, não precisa se preocupar. – Interrompeu-a - Se quiser eu posso te pagar outro... Hm, Café Mocho?
- Ah, obrigada, mas eu não tenho tempo. Me distraí com um desenho na mesa e agora estou atrasada para a...
O ônibus já se aproximava na rua. Ela ainda arriscou gritar enquanto corria: – Tenho que ir, tchau. – E foi.
Marcelo continuou o seu caminho, surpreso que ela tivesse visto o seu desenho e, principalmente, se atrasado por causa dele. Entrou na Cafeteria, mas o seu livro não estava mais lá. Ao invés dele, havia outra coisa na mesa que chamou a sua atenção. Havia traços a mais no desenho. Agora, também sentada no banco, estava uma mulher segurando um guarda-chuva e sorrindo; Outra frase de Caio Fernando e a assinatura. Eis o nome da moça desastrada: Fernanda!
O dia dos dois foi pensativo. Nem ela conseguiu se concentrar nas aulas, nem ele em nada que tentasse fazer para aproveitar a folga. O domingo passou arrastado, parecia que o tempo queria irritá-los, os ponteiros preguiçosos do relógio quase-não-rodando.
Manhã de segunda-feira. De tão distraído que estava no dia anterior, Marcelo se esqueceu de ajustar o despertador, que só tocou muito atrasado. Levantou apressado, vestiu a primeira roupa que encontrou pela frente, pegou a mochila e saiu de casa, ainda sonolento. Entrou na Le Pettit, pediu o seu café, mas não se sentou – foi tomando no caminho. Mal olhou para os lados, nem percebeu que Fernanda estava lá, ao lado do desenho, esperando quem-quer-que-fosse-Marcelo aparecer para devolver o livro. Como ele não chegou, ela foi embora. Frustrada pela espera em vão.
O céu estava cheio de nuvens pesadas, com certeza choveria. E choveu. Choveu o dia inteiro, sem parar. No final da tarde, Fernanda pegou o ônibus e saltou no ponto perto da Cafeteria. Sua casa ainda estava há cinco quarteirões dali, mas ela resolveu ir debaixo da chuva, não se importava. Jogou o capuz fino do capote por cima da cabeça, como se adiantasse alguma coisa contra as gotas violentas que caiam e começou a andar. No meio do caminho, um homem se aproximou dela, abriu o guarda-chuva e disse:
- Minha vez de te salvar da chuva, Fernanda.
Uma alma especial reconheceu de imediato a outra.